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12.8.11

O "BAIXO ESPIRITISMO" EM PRISÃO CELULAR


Com a declaração da república, iniciou-se uma nova ordem social no Brasil do final do século XIX. Época curiosa, posto que antes de se promulgar uma nova constituição (1891), decretou-se (em 1890) um novo código penal (cf. Giumbelli, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, pág. 79)

Neste documento, o artigo 157 (Dos crimes contra a saúde pública) criminalizou o espiritismo.

"Praticar o espiritismo e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou de amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credibilidade pública:

Penas - de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.

(...)

Parágrafo 2o. Em igual pena, e mais na de privação do exercício da profissão por tempo igual ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar qualquer dos atos acima referidos ou assumir a responsabilidade deles."

O artigo 156 proíbe também o exercício da homeopatia, do magnetismo animal e do hipnotismo (entre outros) "sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos" - sob pena de prisão celular e multa.

O legislador deu voz aos segmentos sociais que combatiam a legitimidade do espiritismo no Brasil: a igreja e a medicina (leia-se a tese de doutorado de Angélica A. S. Almeida - "Uma fábrica de loucos": psiquiatria e espiritismo no Brasil).

Bezerra de Menezes, usando seu pseudônimo Max, iniciou uma série de artigos críticos publicados no jornal O Paiz, nos quais critica contundentemente o legislador.

Nestes artigos, uma das estratégias usadas pelo presidente da FEB foi mostrar ao público as pessoas de renome no meio científico e cultural que estudavam e afirmavam-se adeptas do espiritismo.

Ele critica também a pena de prisão celular destinada aos espíritas "castigo inquisitorial, que já fez seu tempo, e que só um espírito acanhado e retrógrado podia lembrar-se de implantar na legislação hodierna" (Bezerra de Menezes. Estudos Filosóficos. Segunda Parte. São Paulo: EDICEL, p. 159)

Sob pressão, o legislador declara que não teve a intenção de condenar incondicionalmente as práticas espíritas:

"... o código não condena as práticas espíritas em absoluto, nem como meio de investigação científica, nem como diversão ou distração (...) mas como indústria ilícita, de que seus exploradores tiram proveito em detrimento da saúde pública." (Giumbelli, 1997. p. 86)

Contudo, o próprio Giumbelli mostra que havia uma intenção de "deslegitimar" o espiritismo, posto que ele faz um levantamento bibliográfico de cientistas europeus que afirmam ser o espiritismo "uma simples 'superstição', não tendo sido jamais comprovados os fenômenos que a ele se atribuem"; bem como o polêmico episódio envolvendo a condenação de Leymarie. (1997, p. 87)

O fato é que as autoridades policiais realizaram diversas ações repressivas contra o movimento espírita, realizaram algumas prisões e obrigaram a federação a defender médiuns em juízo, como bem descreve nosso antropólogo em seu livro premiado.

Uma das consequências do trânsito dos espíritas por delegacias e cortes, consequente ao código penal republicano, foi o emprego do termo "baixo-espiritismo".

"Encontramo-la mencionada nos textos de médicos, em análises do campo religioso, nas sentenças e acórdãos judiciais, nos documentos produzidos pelos aparatos policiais, em reportagens jornalísticas e nas declarações dos próprios agentes religiosos." (Giumbelli, 1997. p. 221-222)

O termo ganha relevância como elemento de distinção, uma vez que a legislação em si não fornece elementos para os atores sociais envolvidos reconhecerem todo o universo cultural e social a que o termo mal empregado remete. Um dos problemas envolve os diversos cultos afro-católicos:

"Na literatura sobre os cultos 'afro-brasileiros', não é raro que encontremos a expressão 'baixo espiritismo'. Dois elementos são básicos para sua definição: o 'sincretismo' de formas culturais originalmente africanas com elementos advindos do 'espiritismo' e a existência de práticas curativas com base nos conselhos dos 'espíritos' de diversas origens." (Giumbelli, 1997. p. 222)

Yvonne Maggie (apud Giumbelli) encontra no início da década de 30 o termo "baixo espiritismo" incorporado no discurso de promotores e juízes:

"Daí, se distinguir o baixo espiritismo para caracterizar o delito: é magia negra, o bruxedo, a feitiçaria, o 'cangerê', a 'macumba', africanismos rudes que podem perturbar as ideias, alterar o estado nervoso, provocar consequencias atentatórias à ordem pública, à moral da coletividade (...) sempre ligado ao propósito de dano." (Revista Forense, 1934. apud Giumbelli, 1997. p. 225)

O trabalho de Giumbelli nos convence da relevância do código de 1890 na geração histórica de uma questão identitária em torno da palavra espiritismo. Ao generalizar, o código aproximou e, ao mesmo tempo, demandou uma diferenciação entre espiritismo e cultos afro-brasileiros, medicina e prática mediúnica, num emaranhado de significados e grupos que causam polêmica até os dias atuais.

Recomendo aos leitores o texto "As muitas faces da intolerância contra o espiritismo", de minha autoria, que publiquei no livro "Pesquisas sobre o espiritismo no Brasil", em 2009, para que esta questão seja ampliada.