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7.6.14

DR MARCH EM DOIS PLANOS






Alexandre Rocha
Edições FEERJ
160 páginas
14 x 21 cm
ISBN: 85-98419-01-X



O professor Eugène Enriquez, em conferência na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG provocou a todos o que o assistiam, quando afirmou que o brasileiro não conhece a sua história. Passada uma década indignada, após ler a mais recente biografia sobre o Dr. March, escrita pelo editor da Lachâtre, começo a dar-lhe razão, ainda que a contragosto.

Fosse um filme, seria difícil de ser classificado. Aparentemente parece-se com um documentário, mas flui de forma tão natural e desperta tantos sentimentos no leitor, que talvez fosse um drama ou, quem sabe, um filme de aventuras. Discreto, Rocha aparece pouco na sua narrativa, comenta pouco. Quem pensa que o estilo biográfico é um texto chato, onde se enaltecem os feitos e se descreve a obra de uma pessoa importante, pode ir mudando os conceitos.

Alexandre obteve e utilizou um número razoável de documentos, livros, teses, entrevistas, produções mediúnicas e material obtido em periódicos científicos e jornalísticos. Não é uma tarefa fácil, reunir informações de um brasileiro do século XIX.

O livro é um passeio pelo Brasil Império, ambienta-se inicialmente na região de fazendas que se tornaria Terezópolis. George March, pai do biografado, é de uma personalidade ímpar. Português, descendente de ingleses, casado com Dona Inácia, afro-brasileira, decide construir uma confortável sede de fazenda em uma região até então erma. Tão notória é a sua fazenda, que a nobreza e a elite da capital do império viaja até lá para hospedar-se e usufruir da companhia do anfitrião e das delícias que pode proporcionar uma propriedade luxuosa em região serrana.

Há um sonoro silêncio em torno da pessoa de Dona Inácia, cuja influência não pode ter se reduzido à cor da pele do biografado. Como se deu a união? Como as elites fluminenses e as autoridades estrangeiras reagiram a este relacionamento? Inácia faleceu antes de George March? Nada disto parece ter chegado às mãos do autor, que diante da falta de informações, nada pode escrever.

Ao redor da fazenda, o tempo passa e com ele segue a história. A mansão, que tem vida breve no pequeno livro, vai da glória às ruínas. Do pedido de visita do próprio imperador (1830) à morte do proprietário (1845) o biógrafo encontra sutilezas da relação entre Brasil e Inglaterra e traz à luz os problemas de herança. Vendida a fazenda, nasce Terezópolis, toma cena a questão Christie, um litígio entre imperadores e o pequeno Guilherme de seis anos fica aos cuidados de tutores no Rio de Janeiro.

Aos quinze anos, o jovem Guilherme estuda medicina e aos vinte e um anos defende tese doutoral, como era exigido à época, graduando-se em medicina.

Alexandre compara o jovem Dr. March a Francisco de Assis. Tivesse ele nascido na Úmbria no século XIX, já teria sido objeto de filmes, livros e talvez da devoção popular italiana. Como Francisco, ele adota um estilo de vida devasso na juventude, que só teve fim após uma enfermidade progressiva, possível seqüela da sífilis, doença que vai fazendo perder a mobilidade corporal aos poucos.

A dor e o fim da herança paterna fizeram-no mudar o estilo de vida, o que Rocha encontra em correspondência a Dias da Cruz.

De formação tradicional, o Dr. March abandonaria a medicina chamada alopática pelos homeopatas para direcionar sua clínica por esta última. Como se deu esta mudança? Silêncio. Nosso biógrafo, contudo, conseguiu levantar toda a publicação clínica nos Anais de Medicina Homeopática do Instituto Hahnemanniano do Brasil, sua atuação nesta instituição, suas descobertas e lutas. Confesso que fiquei assombrado com a comunicação do Dr. March, já sexagenário, na qual ele apresenta melhoras oftalmológicas significativas de presbiopia e vista cansada com o uso de uma certa substância dinamizada, antecedida por uma irritação do globo ocular semelhante a uma conjuntivite, bem aos moldes da teoria homeopática.

As emoções se multiplicariam nos capítulos seguintes. Residindo em Niterói, o médico e cientista, com anuência de toda a sua família, inicia seu apostolado na medicina. Médico de todos, do povo e das elites desiludidas com a medicina tradicional, o Dr. March não apenas atende sem perceber remuneração, como monta uma farmácia homeopática em casa, para distribuir medicamentos ao povo e alberga aos que vêm de longe, incapazes de voltar a casa. Diagnosticando a fome, ele tira dos seus para tratar aos desconhecidos que o procuram. Quando questionado pelos filhos, ele lhes ensina o Evangelho.

Eleito vereador, continua pobre. Eleito juiz, continua justo. Continua médico. Continua filantropo. Deixa de ser vereador e juiz. Não abandona a caridade. Continua espírita. E os casos vão ganhando vida com a pena do autor, sucintos, rápidos, mas cheios de emoção. A comunidade se incomoda com o estado da residência do Dr. March e faz um movimento para adquirir-lhe uma nova casa. Falecem-lhe os filhos e a companheira, mas não lhe faltam forças para acolher, tratar e curar. E os casos impressionam.

Neste ínterim, o Brasil se torna república. A armada se revolta e uma de suas naves de guerra dispara tiros contra o Rio de Janeiro e Niterói. Os March se refugiam, mas a caridade continua, uma caridade tão comovente quanto a saúde popular no Brasil que finda o século XIX e inicia o século XX.

Quando finalmente a doença o impede de locomover-se e fica no leito, não se sabe em que estado de consciência, diferentes médiuns fluminenses começam a emitir receituário homeopático assinando G. March. Evidências de comunicação mediúnica entre vivos?

O médico deu seu último suspiro em 1922. A prefeitura de Niterói assume as custas do enterro e fica em luto por 48 horas. Uma multidão acompanhou o féretro até o cemitério do Maruí. O governador do Estado do Rio de Janeiro se faz representar. Catulo da Paixão Cearense lhe escreve uma poesia. Gilberto Freire faria constar seu nome em um de seus livros.

A segunda parte é uma coletânea de mensagens dadas pelo Dr. March a três médiuns: Telma Pereira, Raul Teixeira e Solange Pessa. Nesta parte o biógrafo se cala totalmente, apenas transcreve.


Alexandre Rocha escreveu um texto limpo, que emociona, quem sabe consiga trazer de volta Dr. March das brumas do esquecimento?