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6.1.23

POR QUE O LIVRO DE CANUTO ABREU SE CHAMA "O EVANGELHO POR FORA"?


Capa de "O evangelho por fora"

Li este livro pela primeira vez há décadas. O autor, Canuto Abreu, era um intelectual espírita muito interessado na questão evangélica, que resolveu estudar mais a fundo o cristianismo e as escrituras. Na década de 50 ele já tinha domínio de hermenêutica bíblica, de grego, de latim e outros conhecimentos que cada dia mais têm sido desvalorizados, com o avanço do individualismo e da cultura de base materialista. Esses conhecimentos estão presentes nos temas que ele escolhe desenvolver. Até mesmo o entendimento de "evangelho" como significando Boa Nova, é discutido e ampliado.

Sempre me questionei por que ele denominou o livro como "O evangelho por fora", e hoje tenho pelo menos uma hipótese para explicar o significado do título.

Estava lendo o livro "Orígenes: uma introdução à sua vida e pensamento", de Heine (2019) e vi que o autor de Alexandria, Orígenes, um dos grandes estudiosos do evangelho e da filosofia dos séculos 2 e 3, se deteve em uma passagem do Apocalipse, no qual se diz o seguinte:

"E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos." Apocalipse 5:1 (Tradução de Ferreira de Almeida)

Orígenes entende que o livro se tratava da Bíblia “o que estava revelado pelo livro estava escrito por fora, porque sua interpretação era fácil e o que estava escrito por dentro, é porque era oculto e espiritual”. (HEINE, 2019, p. 62) Cabe como comentário que Orígenes foi um dos primeiros cristãos a usar o Antigo Testamento para compreender determinadas passagens do Novo Testamento (Evangelho), e já tinha consciência que interpretando literalmente, muitas passagens históricas dos Hebreus e muitas narrativas não seriam nem lógicas, nem reais. Elas, portanto, teriam que ser interpretadas para que se compreendesse seu sentido oculto.

Não tenho como afirmar com certeza, mas ao falar de "O Evangelho por fora", estaria Canuto Abreu referindo-se à interpretação literal do Novo Testamento? Ele apresenta no conteúdo do livro seu entendimento e adesão de diferentes níveis de interpretação do Evangelho, quando trata da hermenêutica, mas esse não é o núcleo do livro. Seria o livro uma espécie de introdução, para um trabalho maior que ele pretendia fazer? 

Deixo as questões aos leitores, em busca de mais entendimento do livro e do pensamento de Canuto Abreu.


Referências

ABREU, Canuto. O evangelho por fora. São Paulo, LFU, 1996.

HEINE, Ronald. Origen: an introdution to his life and thought. OR-USA: Cascade Books, 2019.

17.12.22

ESTUDO MINUCIOSO DO EVANGELHO E ANÁLISE DE CONTEXTO


 

A revista Reformador, editada pela Federação Espírita Brasileira, publicou um artigo do autor de Espiritismo Comentado sobre a "análise minuciosa do Evangelho" e um técnica chamada de análise contextual, que envolve uma análise interna (no caso, do próprio texto, em comparação com o todo, a perícope ou a unidade do texto) em conjunto com informações do autor, geográficas, históricas.

Abaixo o resumo do artigo.

Resumo

A análise minuciosa do Evangelho foi explicada pelo espírito Emmanuel em dois de seus livros: "Caminho, verdade e vida" e "Renúncia", publicados em 1948 e 1944, respectivamente. Ele propõe a leitura de um único versículo (que usa como epígrafe em seus textos publicados) e a meditação profunda dele. Não há proposta de se fazer hermenêutica nem exegese, é uma reflexão. Além de analisar a proposta de Emmanuel, este artigo compara a análise minuciosa, baseada em versículo isolado ou lógion, com a análise contextual, em cujo contexto interno se baseia em perícopes, nas comparações com outras partes do texto evangélico e da Bíblia e com informações históricas, geográficas e arqueológicas.

 

Palavras-chave

Evangelho, Emmanuel, Hermenêutica, Reflexão Pessoal, Exegese, Eisegese


Se você é leitor espírita, a revista Reformador pode ser assinada em papel ou em formato apenas digital, anualmente. Verifique os preços em https://souleitorespirita.com.br/

O acervo da revista, desde os primeiros números no século 19 pode ser acessada gratuitamente no site da Federação Espírita Brasileira.

19.11.20

QUAIS SÃO AS DIFERENÇAS ENTRE "O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO" E OS TRÊS EVANGELHOS SINÓTICOS?

 


Encontrei hoje no texto de Milton Torres, professor da Universidade Adventista de São Paulo, um bom conjunto de explicações, acessíveis a todos nós, interessados no estudo dos evangelhos. Vou retirar literalmente as explicações dele, e interpolo meus comentários entre colchetes:

    1. “... ele [o evangelho de João] não faz nenhuma tentativa de se passar por uma biografia de Jesus.”

    2. “[O evangelho de João] não demonstra interesse por uma cronologia exata dos feitos de Cristo.”

    3. “... os longos discursos de Jesus ali registrados apresentam semelhanças formais com as preleções de Sócrates nos diálogos platônicos”

    4. “... como no caso de Platão, seu método é determinado pelo propósito que persegue, pois lança as ideias de Jesus em metáforas surpreendentes, dramatizando os momentos históricos para que alcancem uma sugestibilidade supra-histórica, para isso empregando símbolos e analogias”.

    5. “... o termo logos aparece, no prólogo de João, em íntima associação com outras expressões de longo pedigree filosófico: panta (“todas as coisas”, isto é, o “universo”); kosmos (“mundo”); sarx (“carne”); en archêi (“no princípio”), etc.

Com esses argumentos, ele tenta mostrar que o escritor de "O evangelho segundo João" produz um texto que é voltado não apenas aos hebreus e descendentes, mas também aos gregos e outros estrangeiros com acesso e influência da cultura helenista, e, dentro dela, de elementos da filosofia grega. É como se esse evangelho fosse uma produção em sintonia com a proposta de Paulo de levar a mensagem cristã para os gentios, através de um texto que é capaz de levar o cristianismo mais próximo à cultura dos membros das comunidades fundadas em cidades gregas e romanas.

Para quem desejar ler o texto todo, que se preocupa com o conceito de lógos, segue a fonte: 

TORRES, Milton R. A retórica joanina do Logos, Revista Caminhando v. 21, n. 2, p. 147-167 jul./dez. 2016. 

https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/Caminhando/article/viewFile/6992/5506


11.2.19

A ESCRITURA INTERPRETA A ESCRITURA?




Estou lendo a dissertação de mestrado “Orígenes ensinou a reencarnação? Uma resposta às teorias neo-gnósticas da reencarnação cristã com referência particular a Orígenes e ao segundo concílio de Constantinopla (553)”, escrita por Dan Schlesinger. Ela foi defendida no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de Glasgow, na Escócia, em 2016.

Trata-se de um belo texto, bem fundamentado de um estudioso da área, simpático ao pensamento ortodoxo cristão que entende que não se deve entender que haja reencarnação no Novo Testamento.

Há muito que comentar e discutir na argumentação do mestre Schlesinger, se puder, vou pinçar alguns argumentos polêmicos e comentá-los no Espiritismo Comentado.

Um ponto interessante que ele apresenta é o que ele denomina como princípio básico de hermenêutica (interpretação dos textos bíblicos) aceita pelos teólogos cristãos em geral: “a escritura interpreta a escritura”. Isso significa que, como bem explica o autor, “onde as passagens são isoladas, obscuras ou aparentemente contraditórias”, interpreta-se levando em conta outras passagens e regras de interpretação bíblica que se referem ao texto. Ele diz que os neo-gnósticos (ele chama de neo-gnósticos os autores do movimento new age, e não dá mostras de conhecer o espiritismo) fazem eisegese (interpretar um texto dando ideias do próprio leitor) e não exegese (interpretação minuciosa do texto).

Em outras palavras, ele diz que os membros do movimento new age fazem uma interpretação forçada dos evangelhos para acomodar suas próprias crenças, e, portanto, defende que a teologia tradicional não faz isso, possivelmente por causa da coerência interna das interpretações com os textos das escrituras e possivelmente com a tradição cristã, que supõe remontar à interpretação dos apóstolos e dos primeiros cristãos.

Olhando com algum afastamento, acho essa argumentação bem falaciosa, em função de alguns argumentos que passo a apresentar.

O primeiro é que o conjunto de livros que compõem o Novo Testamento foram objeto de escolha no final do século IV e início do século V, por Jerônimo (considerado santo), a pedido do papa Dâmaso I, e logo a seguir traduzidos para o latim, compondo a Vulgata. Ele consultou outros cânones existentes, mas teria comentado, segundo Léon Denis, que ele estava ciente que sua escolha não seria aceita pelas diversas comunidades cristãs ao redor do mundo na época.

O argumento que se emprega em defesa do trabalho de Jerônimo, é que ele escolheu apenas os textos que eram coerentes entre si, que não eram contraditórios.

Então, a regra da hermenêutica incorre na chamada “petição de princípio”, que é uma falácia, citada pelo próprio autor contra os “neo-gnósticos” e contra nós, porque uma pessoa escolheu os textos da escritura, mas só se pode interpretar as passagens obscuras usando-se os textos que ele escolheu. Em outras palavras, a compreensão de Jerônimo e de sua tradição se torna, na verdade, um critério para a interpretação dos evangelhos. Temos, então uma regra que impõe uma hermenêutica dos vitoriosos da história, já que havia um número enorme de textos (como o Pastor de Hermas que foi usado por muito tempo pelos cristãos primeiros e depois retirado do cânone) e de interpretações (as mais “populares e discordantes” foram consideradas heresias).

Repetindo, é um erro lógico também chamado de circularidade. Eu só posso interpretar usando os textos que alguém escolheu como certos porque são considerados coerentes entre si, com critérios que Jerônimo considerou.

Esse é um ponto importante, porque permite a consideração e análise de outros textos produzidos nos primeiros séculos, como fontes para a compreensão do que os primeiros cristãos pensavam, para fins do entendimento possível do que Jesus deve ter ensinado aos apóstolos. É uma abordagem hermenêutica que inclui estudos históricos e a necessidade de compreensão de como os grupos cristãos foram se formando, e não apenas assume como heresias o que a ortodoxia vitoriosa assim o considera.

Por essa razão, é sensata a recomendação de Allan Kardec que conheçamos a época e os costumes para entender o texto bíblico e a provocação de Hermínio Miranda quando coloca no título de seu livro sobre o cristianismo a expressão “heresia católica”. 

28.11.18

O EVANGELHO POR FORA?




Estive lendo o livro Hermenêutica Avançada, escrito por Henry Virkler e publicado pela editora Vida Acadêmica. O autor propõe diversos cuidados para a interpretação do texto bíblico em geral, desenvolvendo uma espécie de pequeno curso de interpretação das escrituras.

Durante o texto o autor debate a diferença entre a exegese e a eisegese. Ele afirma que o prefixo “ex” significando “fora de”, “para fora” ou “de”, significa que “o intérprete está tentando derivar seu entendimento do texto, em vez de ter seu significado no (“para dentro”) texto (eisegese)” (Virkler, 2001, p. 11)

A partir dessa leitura penso que dá para supor por que Canuto Abreu deu o nome de “O Evangelho por Fora” para seu livro, e mais especificamente para a primeira parte do seu livro. É um dos poucos livros, que trata de hermenêutica e exegese bíblicas no meio espírita. 

Wilson Garcia apresenta em seu blog um livro de mesmo título escrito por Júlio Abreu Filho, mas explica que ele sucedeu a Canuto no curso de aprendizes do evangelho da FEESP. (http://www.expedienteonline.com.br/entre-tracas-poeira-e-paginas-rotas)

Kardec emprega técnicas de hermenêutica e exegese para a interpretação dos textos do antigo e novo testamentos que encontramos em “O evangelho segundo o espiritismo”, mas não se aprofunda na técnica, e, sim, na harmonização entre o pensamento cristão e os princípios espíritas, o que pode ser chamado de exegese espírita, como bem o diz Canuto Abreu.

Quando o autor destaca que o livro aborda o evangelho por fora, estaria ensinando ao leitor os caminhos para se entender o evangelho a partir do seu próprio texto, da intenção dos autores e não para obter um apoio forçado para suas ideias pessoais (que seria, então, o evangelho por dentro).
Abreu trata de três dos sentidos empregados para interpretação, a hermenêutica e suas regras, as críticas (histórica, dogmática, racionalista, evangélica e bíblica), dos evangelhos canônicos, além de questões linguísticas e da tradição verbal. Um exemplo curioso em que emprega seus conhecimentos está na análise da palavra Evangelho e seus significados, literal, espiritual e anagógico.

Não é um livro de fácil leitura, já que foi escrito por um erudito para mostrar alguns de seus caminhos no entendimento do evangelho, mas é uma leitura importante para quem se propõe ao estudo bíblico no meio espírita. 

14.1.17

QUEM É O PRÓXIMO?

Fonte: http://iejusa.com.br/civilizacoesantigas/imagens/7_55.jpg


Na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10:29-36) o doutor da lei pergunta a Jesus: “Quem é o meu próximo?”, esta pergunta havia sido feita após se ter conversado sobre a lei moisaica, mais especificamente sobre uma passagem do Levítico, na qual se fala para “amar ao próximo como a si mesmo” (Levítico 19:18)

Lendo mais detidamente a citação, no texto de Moisés, Yahweh está tratando da justiça no julgamento. Inicialmente ele fala para não tratar de forma diferente o pobre e o rico (19:15), depois fala do compatriota (irmão) e recomenda repreender, para que não se cometam crimes de vingança entre os israelitas. Então se escreve:

“Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. (grifos meus) Amarás  o teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18)

Vê-se aqui que a lei mosaica tenta fazer que os israelitas se tratassem como irmãos, ou seja, que se aceitassem sem distinção de riqueza ou pobreza e que renunciassem à vingança de sangue entre si, para tratar suas diferenças dentro da lei. Neste contexto, o próximo a que se refere Yahweh são os compatriotas.

Se aceita esta acepção, faz sentido a questão proposta pelo doutor da lei a Jesus. Quando ele pergunta quem é o próximo dele, ele esta perguntando se o alcance da exigência da lei são os seus compatriotas, apenas, mas Jesus vai estabelecer que se deve amar as pessoas sem a distinção de nacionalidade.

Ao contar a parábola, Jesus elege como herói um samaritano. Ele toca em uma rixa antiga dos descendentes de Abraão. Após o reinado de Salomão, os hebreus se dividiram em dois reinos: Israel e Judá. O reino de Israel tem a Samaria como capital, mas foi conquistado pelo  assírio Sargão II em torno do século VIII a.C., o que gerou uma espécie de influência religiosa oriental nos costumes da região. Os samaritanos, contudo, continuavam aceitando os cinco livros da lei moisaica, mas os judeus, na época de Jesus, condenavam estas diferenças e alimentavam a separação. A rixa com os samaritanos ia ao ponto destes terem seu próprio templo, o que os isolava do templo de Jerusalém.

Habitantes do reino de Judá e habitantes do reino de Israel se viam como diferentes. Eles, por consequência, não se viam como "próximos", embora ambos vivessem sob as regras da lei moisaica.

Os Romanos dividiram a o antigo reino de Salomão, na época de Jesus, em regiões administrativas, entre as quais se encontram  a Judeia, a Samaria e a Galileia. Eles geralmente observavam as semelhanças culturais para que seu domínio fosse principalmente na esfera de governo, evitando controle militar ostensivo. Era uma ideia política herdada dos gregos: "Dividir para conquistar". Estas três regiões continuam sob a influência da lei de Moisés, mas a divisão deve ter evidenciado a percepção das diferenças.

Na história que Jesus conta, um suposto judeu, assaltado e deixado ferido para morrer, é socorrido por um samaritano, ao mesmo tempo em que um sacerdote e um levita judeus o deixaram no caminho. Então Jesus pergunta ao doutor da lei quem era o próximo da vítima de assalto, e seu interlocutor admite que é o samaritano, com as palavras “aquele que usou de misericórdia para com ele”.
Jesus propunha uma ampliação da noção de “próximo”. Ela incluiria até mesmo os estrangeiros, e mesmo os que fossem inimigos dos Judeus, como os romanos, por exemplo. É por esta razão que Jesus afirma no sermão da montanha:

“Ouvistes o que foi dito: “Amarás o teu próximo” e “odiarás o teu inimigo”.  Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai [que está] nos céus, já que seu sol desponta sobre maus e bons, e cai chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5:43-45)

Jesus propunha que culturas diferentes pudessem conviver sob uma lei maior, a do Pai. Que não houvesse xenofobia e preconceito no trato entre diferentes. Como alguém que morou a vida quase toda na Galileia, ele percebia que os galileus eram vistos pelos habitantes da Judeia como inferiores,  não importa o quanto vivesse de acordo com a lei.

A universalidade da noção de próximo possibilitou aos cristãos uma ampliação além dos limites da cultura e costumes hebraicos. Como estas questões regionais ficaram distantes no tempo, e passamos a estudar apenas superficialmente a época, a noção de próximo passou para o nível individual, e é geralmente interpretada, hoje, como “qualquer pessoa”, o que gerou um problema para o entendimento dos inimigos, que deixaram de ser inimigos do estado ou da cultura hebraica, e passaram a ser entendidos como inimigos pessoais. Allan Kardec percebeu a estranheza da frase “amai os vossos inimigos” no capítulo XII de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Nos dias de hoje, em que o mundo, e especialmente a Europa, se vê diante da questão da xenofobia, decorrente das migrações oriundas de regiões de guerra e fome, o ensinamento de Jesus nunca foi tão atual.

3.5.13

COMO KARDEC UTILIZOU A EXPRESSÃO "PRINCÍPIO INTELIGENTE"?



Um desafio importante para o pensamento espírita é evitar a confusão de palavras e distinguir diferentes conceitos em diferentes autores.

Desdobramento, por exemplo, é uma palavra amplamente utilizada pelo movimento espírita brasileiro contemporâneo, para referir-se a um tipo de mediunidade na qual o Espírito do médium aparenta sair do corpo e incursionar-se pelo plano espiritual. Na obra de Kardec, no entanto, este termo não é empregado. Para referir-se à mesma faculdade, o fundador do espiritismo usa a expressão "sonambulismo mediúnico", e o explica a partir da teoria da emancipação da alma.

Um termo praticamente redefinido é a expressão kardequiana princípio inteligente. Lendo sua obra, vê-se que o principal emprego para esta expressão é fazer oposição à ideia de um princípio material, ou seja, adotar uma posição filosófica dualista, na qual espírito (com e minúsculo) e matéria formam os elementos constitutivos do universo, não se podendo reduzir um ao outro. Allan Kardec está propondo a existência de uma natureza material e uma natureza espiritual, que se interagem, mas são irredutíveis uma à outra.

Um dos recursos da hermenêutica usados para identificar o sentido das palavras é verificar como são utilizadas pelo mesmo autor em diferentes textos produzidos, se possível (desde que ele não as tenha redefinido, como pode acontecer com os filósofos e cientistas ao longo de sua obra). São diversas as passagens nos textos de Kardec na qual encontramos uma explicação do que é princípio inteligente. Selecionei algumas, de obras e passagens menos lidas, para fundamentar minha análise do sentido desta expressão:

3. O Espírito propriamente dito é o princípio inteligente; sua natureza íntima nos é desconhecida; para nós ele é imaterial, porque não tem nenhuma analogia com o que chamamos matéria.(O espiritismo em sua expressão mais simples, os grifos são nossos)

Vê-se que Kardec não atribui "princípio inteligente" apenas ao princípio espiritual que animaria seres anteriores ao homem na escala evolutiva.

6. Terá o princípio espiritual sua fonte de origem no elemento cósmico universal? Será ele apenas uma transformação, um modo de existência desse elemento, como a luz, a eletricidade, o calor, etc.?

Se fosse assim, o princípio espiritual sofreria as vicissitudes da matéria; extinguir-se-ia pela desagregação, como o princípio vital; momentânea seria, como a do corpo, a existência do ser inteligente que, então, ao morrer, volveria ao nada, ou, o que daria na mesma, ao todo universal. Seria, numa palavra, a sanção das doutrinas materialistas. (A Gênese, cap. 11 - Princípio espiritual)

Neste trecho de um capítulo que merece ser lido por inteiro, Kardec justifica porque mantém uma posição dualista. O princípio espiritual não apresenta propriedades da matéria. Ele percebe claramente que o monismo, se levado às últimas consequências, está associado ao pensamento materialista ou fisicalista. O monismo, como doutrina filosófica, embora possa ter muitas acepções, geralmente é utilizado nos nossos dias como a inexistência ou impossibilidade de se defender com bases empíricas a existência de outra natureza que não a material. É uma expressão do ceticismo radical e de uma concepção das ciências naturais.

21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está no invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto.(A Gênese, cap. III, O Bem e o Mal. Os grifos são nossos) 


Esta também é uma das passagens de Kardec na qual se vê que quando ele emprega a expressão princípio inteligente, não se refere apenas aos seres anteriores aos humanos, mas a um princípio que se opõe ao princípio material. Ele argumenta pela necessidade da interação entre os princípios (espirito e matéria) para a evolução do espírito. Kardec defende aquilo que o Prof. Rubens Romanelli (espírita mineiro e professor universitário) denominaria "o primado do espírito".

Podemos continuar, citando outras obras e contextos em Allan Kardec, mas ficaria enfadonho. Creio que é suficiente para demonstrar que nosso uso contemporâneo de "princípio inteligente" não é o mesmo empregado pelo mestre lionês.

11.12.07

A Tentação do Deserto e o Mandamento Divino

Alice perguntou: Gostaria que você me enviasse, se possível, alguma explicação a respeito da máxima de Jesus, referente ao capítulo XI do Evangelho Segundo o Espiritismo : " Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, de de todo o entendimento e com toda a força". Queria compreender o significado das expressões sublinhadas e o que elas têm a ver com a tentação do deserto.

Jesus está fazendo uma citação do Deuteronômio, capítulo 6, versículo 5. Trata-se do primeiro mandamento de Iahweh, possivelmente escrito por Moisés, aos Israelitas.

Em "O Evangelho Segundo o Espiritismo", Kardec se detém no segundo mandamento de Jesus, por esta razão não tece comentários sobre o já conhecido preceito do Antigo Testamento.

Seguindo a proposta Kardequiana, ao contextualizar a frase, retornamos ao Egito, de onde Moisés acabara de libertar o povo de Israel. Como todos sabemos, no Egito Antigo fazia-se o culto de diversos deuses, e após anos de escravidão muitos dos israelitas absorveram práticas religiosas egípcias. O monoteísmo pregado por Moisés era estranho àquele povo. Além dos deuses egípcios, os Israelitas seriam expostos aos cultos das divindades dos povos que se tornariam seus vizinhos na futura Palestina. Os Filisteus, os povos do mar, os cananeus e muitos outros cultuavam divindades estranhas a Iahweh.



Figura 1: A Criação de Adão, de Michelângelo

O sentido da frase nos parece claro: Iahweh manda que o povo de Israel obedeça apenas a seus princípios e leis, não rendendo culto a outros deuses. Não poderia haver lugar na alma ou no coração dos Israelitas para outra divindade. Se necessário, Iahweh exige que os Israelitas defendam sua crença com toda a sua força. (ou poder, como foi traduzido na tradução de Ferreira de Almeida). Uma evidência deste sentido é a própria continuidade do texto do Deuteronômio que deixa explícito no versículo 14: "Não seguireis outros deuses, qualquer um dos deuses dos povos que estão ao vosso redor, pois Iahweh teu Deus é um Deus ciumento, que habita em teu meio."

Vê-se que Moisés tinha suas razões para encabeçar com este mandamento a lista dos demais, posto que enquanto ele os recebia no monte, tendo demorado alguns dias, os Israelitas se esqueceram-se de Iahweh e fundiram o bezerro de ouro para culto.



Figura 2: Moisés, de Michelângelo

Mateus não faz referência a "poder" ou "força" em seu evangelho. Ele adiciona a palavra "entendimento" (Tradução da Bíblia de Jerusalém) ou "pensamento" (Tradução de Ferreira de Almeida). No Evangelho de Marcos (12:30) e no de Lucas (10:27) se encontram as quatro expressões: coração, alma, entendimento e força.

Na narrativa de Marcos há outra evidência de que Jesus se referia à crença em um único Deus. O escriba, com quem Jesus conversava, afirma "Muito bem, Mestre, tens razão em dizer que ele é o único e não existe outro além dele, e amá-lo de todo o coração, de toda a inteligência e com toda a força (...) é mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios. Jesus vendo que ele respondera com inteligência, disse-lhe: "Tu não estás longe do Reino de Deus".

Nesta passagem o evangelista introduz a questão da interioridade da crença em Deus. Amar com coração, alma e entendimento é amar internamente a Deus; render-lhe sacrifícios e oferendas é fazer com que a sociedade saiba que se diz amá-lo ou temê-lo. Esta já é uma contribuição de Jesus à concepção de Deus de sua época. Há uma outra passagem em que ele diz que Deus não deve ser adorado em templos, mas "em espírito e verdade". Jesus sempre foi crítico dos que dizem amar a Deus exteriormente e que na intimidade desrespeitam seus princípios. Ele é crítico contumaz da hipocrisia de fariseus em diversas passagens dos evangelhos. Mais que uma crença exterior, social, amar a Deus com o coração, com a alma e com o entendimento é ser consistente com sua proposta de vida. Esta é uma das chaves para se compreender o que Jesus considera ser o Reino.

Para se fazer a distinção das palavra alma e coração, uma análise correta (segundo a hermenêutica) demandaria a identificação do seu equivalente em hebraico e uma análise da mesma palavra em outras passagens do pentateuco, ou pelo menos uma consulta a exegetas consagrados, o que está além da minha capacidade atual, portanto, prefiro não emitir opinião.


Figura 3: Tentação do Deserto de Gustave Doré

Quanto à tentação do deserto, em Mateus 4: 8-10, o diabo (adversário de Iahweh, outra divindade na concepção histórico filosófica, portanto) propõe que Jesus se lhe prostre e o adore, oferecendo-lhe para tanto todos os reinos do mundo. Jesus recorda-lhe uma outra passagem do Deuteronômio e o manda embora dizendo: "Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto". Fica óbvia a associação entre as passagens.