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11.10.08

Comunicação sobre Obsessões Coletivas

Em fevereiro de 1865, Kardec publicou na Revista Espírita a comunicação de um espírito protetor através da conhecida mediunidade da Sra. Delanne. Ela trata das obsessões coletivas e explica um caso em Madagascar e o dos endemoniados de Morzine, que acabamos de comentar.


Figura 1: Capa atual da Revista Espírita, publicada pela FEB

"Esta noite eu vos ouvi ver os fatos de obsessão que se passaram em Madagascar; se o permitis, emitiria minha opinião sobre esse assunto.

Nota.- O Espírito não tinha sido evocado; estava, pois, lá, no meio da sociedade, escutando, sem ser visto, o que ali se dizia. É assim que, com o nosso desconhecimento, temos sem cessar, testemunhas invisíveis de nossas ações.

Essas alucinações, como as chama o correspondente do jornal, não são outra coisa senão obsessão, obsessão no entanto de um caráter diferente daquelas que conheceis. Aqui, é uma obsessão coletiva produzida por uma plêiade de Espíritos atrasados, que, tendo conservado suas antigas opiniões políticas, vêm por manifestações tentar perturbar seus compatriotas, a fim de que estes últimos, tomados de medo, não ousem apoiar as idéias de civilização que começam a se implantar nesse país onde o progresso começa a nascer.

Os Espíritos obsessores que impelem essas pobres pessoas a tantas manifestações ridículas, são os dos antigos Malgaches, que estão furiosos, e eu o repito, de ver os habitantes dessas regiões admitir as idéias de civilização que alguns Espíritos avançados, encarnados, têm a missão de implantar entre eles. Também os ouvis freqüentemente repetir: "Mais preces, abaixo os brancos, etc." É vos fazer compreender que são antipáticos a tudo o que pode vir dos Europeus, quer dizer, do centro intelectual.

Não é uma grande confirmação de vossos princípios, essas manifestações à vista de todo um povo? Elas são menos produzidas por essas populações semi-selvagens do que para a sanção de vossos trabalhos.

As possessões de Morzine têm um caráter mais particular, ou por melhor dizer, mais restrito. Podem estudar-se, sem sair do lugar, as fases de cada Espírito; observando os detalhes, cada individualidade oferece um estudo especial, ao passo que as manifestações de Madagascar têm a espontaneidade e o caráter nacional. É toda uma população de antigos Espíritos atrasados que vêem, com despeito, sua pátria sofrer o impulso do progresso. Não tendo progresso por si mesmos, procuram entravar a marcha da Providência.

Os Espíritos de Morzine são comparativamente mais avançados; embora brutos, julgam mais sadiamente do que os Malgaches; discernem o bem e o mal, uma vez que sabem reconhecer que a forma da prece nada é, mas que o pensamento é tudo; vereis, de resto, mais tarde, pelos estudos que fareis, que não são tão atrasados quanto o parecem à primeira vista. Aqui, é para mostrar que a ciência é impotente para curar esses casos por seus meios materiais; no fundo, é para atrair a atenção e confirmar o princípio."

Os Possessos de Morzine

Figura1: Morzine no mapa francês

Allan Kardec publicou um estudo sobre "possessos" na região de Morzine, Alta Savóia, pequena cidade com cerca de 2500 pessoas. O fenômeno iniciou-se com duas estudantes que alegavam ver Maria, mãe de Jesus, e que apresentavam convulsões. Elas foram exorcizadas pelo abade Pinguet em 1857 e pararam temporariamente de apresentar suas visões e convulsões.


A França anexou a Savóia em 1860 e as autoridades francesas proibiram a prática de exorcismo, tido como superstição (Harris, 1997). Outras pessoas começaram a apresentar não apenas as convulsões, mas diziam-se tomadas pelo demônio, o que levou o Dr. Artháud, de Lyon, a diagnosticar o acontecimento social de "histero-demonopatia". Cabe comentar que nesta época mal se distinguia a histeria da epilepsia, posto que pouco se sabia sobre os neurônios e seu funcionamento.



Figura2: Igreja de Morzine

As pessoas "endemoniadas" aumentaram e chegariam a quase duzentas até 1863. Morzine tornou-se um problema para a administração francesa, que, influenciada pelo espírito racionalista e materialista oriundo da revolução francesa, entendia tratar-se de ignorância, superstição ou algum quadro clínico de causas naturais.

O governo francês enviou o Dr. Adolphe Constant (ou Constans) para o local. Ele defendeu em seu relatório que a demonopatia era causada pelos seguintes fatores: insalubridade das habitações, má qualidade da alimentação e estado histérico dos doentes do sexo feminino (à época acreditava-se que a histeria era relacionada ao útero, sendo uma doença feminina). Não restringindo-se a diagnosticar, o alienista iniciou uma "cruzada" contra os doentes. Segregou-os do meio social, internando-os em hospitais de alienados e até em quartéis. Posteriormente ele viria a criar bibliotecas e cursos de dança (Harris, 1997), mas continuou suprimindo violentamente as manifestações. Algumas mulheres, em 1863 chegaram a fugir para a Suiça, com medo de serem extraditadas para as américas.

A suposta demonopatia continuou até cerca de 1873. Ruth Harris afirma que com os atos de repressão das autoridades francesas, muitos "endemoniados" passaram a dar vazão ao demônio em suas casas, sendo acobertados por seus familiares.

Vê-se que as ações propostas pelo médico não guardam muita relação com sua análise de causas. Esta última tornou-se uma espécie de "discurso científico" que justificaria os atos arbitrários que cometeu.



Figura 3: Vista atual de Morzine

A história chegou a Mirville (magnetizador) e a Kardec. Kardec trocou correspondências com médicos e espíritas locais e dá a entender que chegou a visitar a região e a ver alguns dos "possessos".

Ele publicou em dezembro de 1862 o seu primeiro artigo sobre o evento, e mais quatro outros em 1863. Constans leu alguns dos artigos e os dois entraram em debate franco sobre a questão.

Kardec desconstrói a análise de Constans. Segundo ele, não há como afirmar que a localidade fosse miserável e insalubre (outros lugares na França e na Suiça seriam mais e não apresentariam os mesmos fenômenos), não há outros sinais de má alimentação (ele encontrou poucas pessoas com raquitismo ou bócio), e a tese da histero-demonopatia, além de meramente descritiva pelo frágil avanço das ciências da época, não explicava alguns fenômenos que aconteceram no povoado.


O Dr. Alexander sintetizou os argumentos de Kardec no trabalho publicado recentemente na "Transcultural Psychiatry" da seguinte forma:

"(...) a expressão de habilidades não adquiridas (falar francês fluente e responder em linguagens diferentes, como o alemão e o latim), o conhecimento de eventos à distância (clarividência), a leitura do pensamento de outros (telepatia), transfiguração, referir-se a si mesmo na terceira pessoa ("ela", "a filha", etc.), a manifestação corrente de uma personalidade que se considera o demônio, o paciente afirmar que um poder externo o controla, o comportamento normal nos intervalos entre os episódios, pressão arterial normal apesar da intensa agitação, ódio intenso da religião e amnésia entre os episódios."

Kardec argumenta que se trata de uma obsessão coletiva, que abateu-se na localidade "uma nuvem de espíritos malfazejos", da mesma forma que já aconteceu em outros lugares. As vítimas têm sensibilidade mediúnica e "o eu do espírito estranho neutraliza momentaneamente o eu pessoal".


Figura 4: Mesmerismo
O codificador entende que "os espíritos curadores e consoladores, atraídos pelo fluidos simpáticos, substituirão a maliga e cruel influência que desola aquela população." Ele cita a correspondência do Sr. A..., de Moscou, que passou por problemas semelhante em suas terras e que tratou dos obsediados com "imposição de mãos" e "fervorosa prece".

Estes artigos de Kardec, ao lado dos que discutem a chamada "loucura espírita" são as bases de muitos dos trabalhos e terapêuticas que dispensamos hoje a médiuns, doentes mentais e pessoas em sofrimento psíquico que procuram os centros espíritas.

Um olhar espírita do século XXI, já distante no tempo, seguramente manteria a análise do codificador: há indícios de mediunidade e obsessão nestes fenômenos. Isto não significa que, em um fenômeno coletivo como este, também não pudesse haver epilépticos (que infelizmente foram asilados), histéricos ou simplesmente neuróticos impressionáveis e pessoas que viveram uma situação de estresse e de desenraizamento, devido à mudança de pátria e à intervenção repressora cultural das autoridades francesas. Junte-se tudo isto e temos uma explicação plausível para as proporções e temporalidade das pretensas possessões de Morzine.